IMPROVISAÇÃO
Flávio Cardoso dos Santos Junior
Doutorando em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU-FAUFBA)

CORPO
“Eu não tenho corpo, eu sou corpo!” . O meu corpo não se limita a uma mera unidade biológica e sim um local de subjetividade, expressividade, memória, desejos e devires (corpo-voz e corpo-memória) . Meu “corpo território” é aquele que entende o universo e suas realidades [...] a partir de si mesmo, . É interessante pensar que esse corpo, enquanto território se molda dentro do “espaço-tempo” de nossas intimas lembranças ancestrais, afetivas e sensíveis que são acumuladas ao decorrer da vida e por essa razão se faz necessário compreende-lo “[...] dentro de possibilidades infinitas, que podem, ao mesmo tempo, ser reveladoras de situações imagináveis, mas que podem, também, esconder [...] outros conhecimentos.” , outras formas de pensar e agir que rompem com as convenções sociais impostas pela sociedade. Meu corpo se molda constantemente ao ambiente que vive através da criatividade, imaginário e experiência e ao substituir os hábitos de sua rotina, ou mudar o repertório que normalmente usa nesse ambiente ele está improvisando e essa ação corporal de improvisar não tem nada a haver com o erro ou a bagunça. Mesmo sem ter consciência vivemos improvisando, nas ações e no pensamento constantemente mudamos o padrão, mesmo que em pequena escala, seja naquele dia que resolvemos fazer um caminho diferente para ir trabalhar ou no dia que decidimos usar um perfume que estava guardado há tempos. A grande problemática está em contrariar a lógica imposta, pois o corpo que muito improvisa é tido como transgressor e desorganizado. Dessa maneira, nosso corpo é um texto carente de leitura, pois expressa linguagem que é escrita no espaço, as pessoas precisam se “alfabetizar” no sentido de poderem decodificar e entender essa linguagem, pois o corpo fala!

Caroline Dias de Oliveira Silva (Carol Dia) Mestranda em Cultura e Sociedade (Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade da IHAC-UFBA) 

DESLOCAMENTO

deslocar 
do real 
ao imaginário
e vice versa
dar voltas ao redor da terra
e de si mesma
sem ensimesmar-se
de a pé 
de andança
de carrera 
divagar
contar os passos
esquecendo por onde passou
sem nunca esquecer de onde saiu
sempre se alembrar do nascimento
pois desde o parimento 
a vida é mover
tudo que é vivo se move
mas nem tudo que se move é viver
deslocamento é gesto é agir é devir
deriva.açãoo
coração bate no peito
se muito ando depois me deito

o deslocamento combina com a indeterminação do resultado no improviso
pois é ir sabendo-se que se sabe só o passado e só se faz o presente
o deslocar assim como o improviso não sabe do que será do futuro
antever o ato o movimento a ação mas a o efeito não
é acreditar e é ter medo do destino
se olhar direto no sol a vista cansa
a deslocação é a mudança

o vento balança 
balangandãs berenguendéns
deslocamento é então sair ir e é deixar prá trás também 
é correr é navegar 
é a arte é a natureza é a vida é o tempo
deslocar as juntas de tanto tirar do lugar 
pra re-mover
desloco o corpo no espaço o pensamento no sonho e do deslocar da língua na boca é que nascem as palavras

fragmentos de registros de umas andanças que inspiraram a escrita ao lado:


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Igor Gonçalves Queiroz
Doutorado em Arquitetura e Urbanismo
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA (PPG-AU/FAUFBA)

BRINCADEIRA

“Todo desempenho infantil orienta-se não pela “eternidade” dos produtos, mas sim pelo “instante” do gesto.” (Walter Benjamin, 1928)

Ao referirmos à brincadeira da criança – em especial, na cidade – “quebrar a regra” é o que promove o ato criativo. A brincadeira sempre é um espaço de improvisação, conflitos e decisões. A liberdade da atividade lúdica das crianças, seja através dos jogos, brinquedos ou brincadeiras, está em permitir que de uma forma livre, possam, segundo os seus próprios desejos, compreender o mundo real sem negar seus desvios e de descobrirem mundos imaginários. O brincar não é só uma atividade individual vinculada ao desenvolvimento infantil, mas uma prática social que permanece e ao mesmo tempo se transforma a cada geração, intimamente vinculada aos processos sociais e de subjetivação.

[As crianças] sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção, do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente para elas. Neles, estão menos empenhados em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer entre os mais diferentes materiais, através daquilo que criam em suas brincadeiras, uma relação nova e incoerente. Com isso as crianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande. Dever-se-ia ter sempre vista as normas desse pequeno mundo quando se deseja criar premeditadamente para crianças e não se prefere deixar que a própria atividade - com tudo aquilo que é nela requisito e instrumento - encontre por si mesma o caminho até elas. (BENJAMIN, 1924 In: BENJAMIN, 2009, p. 57)

Este “pequeno mundo” criado pela criança, ao qual Benjamin se refere, não se configura somente como um escape, num descolamento do “grande mundo” adulto, e sim como um desvio, sempre coexistentes, co-implicados e indissociáveis. São espaços de práticas improváveis e de experimentações radicais dos jogos infantis, aqueles que não se sabe para que serve, muitas vezes de caráter precário e efêmero, mas politicamente subversivos e pertencentes às histórias inimagináveis das nossas cidades.

Esta produção de outros espaços-tempos só é possível graças ao conflito da criança com o adulto e com a matéria (na cidade). Neste pequeno mundo, a criança vive e dá ordens. São gestos de autonomia da criança que contribuem para romper com a falsa ideia de um sujeito infante, mudo e do gesto adocicado e inocente infantil. O entendimento desta coexistência entre mundos – o pequeno e o grande, um dentro do outro – se dá, não a partir da noção moderna e adulta de infância, ou sob o peso da imagem da “esperança” ou de um vir-a-ser futuro útil, mas a partir da autonomia e liberdade da criança.

A necessidade da criança de brincar com o que a cerca e construir um novo mundo, dando outra significação ao cotidiano e ao espaço, incorporando às suas vivências, enfatiza sua sensibilidade criadora no mundo material. Na experiência da cidade, como a criação de uma possibilidade utópica de questionamento da realidade existente, ou o desejo de construir o seu próprio mundo, a brincadeira pode ser compreendida como uma experiência estética e, sobretudo, numa atitude que interroga a discussão política. A criança faz da cidade-brinquedo a sua própria brincadeira; faz o nada virar qualquer coisa e, mesmo depois da brincadeira ter chegado ao fim, ela permanece como uma criação nova, uma memória guardada em cada um, e possível de ser transmitida.

Para a criança que brinca, realidade e jogo se fundem num trabalho improvisado e jamais concluído. Elas se deixam orientar pela temporalidade da experimentação, dada de maneira lúdica e radical, pois não estão previamente interessadas na elaboração de um produto final ou acabado. É neste jogo de espacialidades e experimentações incompletas e complexas que a criança se encontra. Ela é limiar entre o real e o imaginário; entre sonhar e acordar; entre tempos lineares e emaranhados; entre discursos hegemônicos e transversais; entre funções pré-estabelecidas e práticas desordenadoras do espaço; entre o projetado e o improvisado.


REFERÊNCIAS

BALANÇAÊ: Cartografias de um movimento qualquer. Realização de Igor Queiroz; Leonardo Vieira; Thairo Pandolfi. Música: Xiquexique (Tom Zé). Salvador, 2014. (3 min.), son., color. Disponível em: . Acesso em: 30 jan. 2020.

BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. 2 Ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009.
FRAGMENTOS DO RISCO
Agnes Cajaiba
Doutorado em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU-FAUFBA)

correr o risco, gerar uma rota, marcar um trajeto, se dispor ao risco através do gesto e do corpo, só

la palavra que los demás decimos del dibujo, y la que el artista necessita explicitar para actuar, es un elemento clave que abre el horizonte de la imaginación, cierra el camino de ciertos extravíos y establece el mapa posible de las aventuras y de las imágenes de aquello que es lá geografia de la creación.

perigos calculáveis, que é diferente de ser previsível

O ponto de partida de qualquer teoria do risco deve ser a ideia de que qualquer pessoa, de livre e espontânea vontade, corre risco.

Os excessos de todos os tipos, as numerosas práticas de risco, todas as efervescências de que a atualidade se mostra pródiga, o fascínio pelo fait divers heterodoxo e as rebeliões juvenis são, neste sentido, expressões da sede do infinito que assedia o corpo social. Desejo do indefinido, seria mais judicioso dizer, que não se reconhece mais no ‘positivo’ oficial, na substância institucional.

ADAMS, John. Risco. Tradução: Renita Rimoli Esteves. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2009.BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
_____. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Denteiem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
VELOSO, Caetano. Língua. Caetano Veloso (Compositor). In: _____ Velô, Caetano e a Banda Nova
MOLINA, Juan José Gómez (Coord.). Estrategias del dibujo en el arte contempotáneo. Madrid: Cátedra, 2006.
MAFFESOLI, Michel. O ritmo da vida, variações sobre o imaginário pós-moderno. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2007.
victor bastos vitoria
mestrando do programa de pós graduação em dança – ufba
palavra verbete: hábito

hábito; s.m;

pode ser conceituado como todos os comportamentos que se repetem no tempo, de forma sistemática. deve ficar claro que um hábito é uma conduta não é um mero diligente, mas deve ser de um grau de regularidade que se confundem com a vida do sujeito. podem também ser descritas como artefatos cognitivos

por quê então selecionar hábito como a palavra-chave desse processo experimental do laboratório corpocidade – improvisação crítica?

tudo o que é vivo em alguma medida improvisa. e para se improvisar precisamos de um repertorio de padrões. daqui adiante fica forte a co-relação de um com o outro. durante todo o laboratório corpocidade, discutimos varias questões sobre hábito e improvisação (aproximações, distanciamentos etc) , entre elas, eu selecionei a dificuldade de desabituar os padrões normativos, nesta ocasião discutimos uma forma especifica de padrão normativo: que é a lógica do padrão de gosto, de corporalidade, de composição; tentamos a todo o tempo consolidar a lógica do que é ‘’bonitinho, arrumadinho’’, o que nunca escapa a regra. e neste sentido, a lógica da improvisação, seria, portanto o de enfeiurar a coisa, desviar a linearidade do comportamento casual. pois na improvisação o que improvisamos não é a situação, mas à substituição de um hábito corporalmente consolidado por outro. nesse sentido a improvisação é um embate corporal! pois na improvisação se tratando da substituição de um hábito por outro, sem ambiciar a consolidação do novo.

agora, importa destacar a especificidade/qualidade da improvisação, que contrariando o habito que se consolida ao longo do tempo, a improvisação pode ser rasura desse moto–contínuo habitual, ou seja, focalizar a ação da improvisação pelo seu aspecto circunstancial e provisório permite percebe- lá na complexidade que lhe é própria, a partir dos agenciamentos que ela tanto promove quanto dela é resultante. neste sentido, critico, pois ao improvisar se produz relações - de tempo, de co-implicação, de adaptação -, que ao se reiterar (a coisa improvisada) no espaço-tempo deixa de possuir essa qualidade do que é experimental, e esvazia a critica, pois foi capturado como uma norma, e fica definido um certo padrão consolidado.

Referências

BRITTO, Fabiana Dultra. Corpo e Ambiente: co-determinações em processo. In: Paisagens do Corpo, Cadernos PPGAU, ano VI, número especial, EDUFBA: 2008 b. p. 14-20

VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Ciência: formas de conhecimento – arte e ciência uma visão a partir da complexidade. Jorge de Albuquerque Vieira. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2007.

BUARQUE, Chico. Almanaque (álbum). Ariola/Philips. Rio de Janeiro. 1981

re.per.tó.rio
[do latim repertorium, "inventário”]

Depósito ou acervo de soluções que pode ser acessado a qualquer tempo e possibilitar a improvisação. No plural, repertórios são coleções ou compilações que abrem possibilidades de criação de novas soluções a partir de resultados previamente utilizados.
Nas artes performativas, a ideia de repertório margeia uma sensação de engessamento ou de repetição da apresentação de forma muito próxima da que foi previamente pensada, ensaiada e exibida. O balé de repertório, as companhias de teatro de repertório, o repertório da música clássica. Entende-se que repertório é tudo aquilo que pode ser remontado: a mesma coreografia, a mesma música, a mesma peça. Entretanto compreendemos, de antemão, que essa manifestação não seria a mesma.
Na pincelagem dos conhecimentos adquiridos, a montagem desses elementos forma inicialmente um todo, um cenário. No momento em que há a necessidade de uma remontagem, esses mesmos elementos, reunidos de outra forma, são capazes de resultar num novo produto. O tempo, por exemplo, age sobre toda a composição e a reposiciona no mundo, onde o seu impacto sobre as pessoas, as materialidades, também se transforma.
A partir daí, a noção de acesso ao repertório pode ser expandida para a possibilidade de bricolar trechos de diferentes ensaios, que executados em hora e lugares diferentes, imediatamente se renovarão num novo jeito de se manifestar. Num momento futuro, esse novo arranjo terá se caracterizado em outros retalhos que podem ser reorganizados e remodelados em diferentes soluções.
Na teoria da informação, a comunicação entre o emissor e o receptor vai depender da bagagem de ambos, para tornar possível o acesso ao acervo proposto. Entretanto, o receptor só poderá apreender a mensagem a partir da sua própria experiência, e é nesse momento que se dá a possibilidade da partilha da informação, que necessariamente resultará, para ambos, novas possibilidades de repertório.
Por fim, caracterizar o conceito de repertório só é possível a partir do próprio repertório que se tem sobre essa ideia, na qualidade de uma metalinguagem. A improvisação acontece a partir do momento que, tendo como base fragmentos de vivências anteriores, os primeiros cenários se complementam a outros, os individuais aos coletivos, e assim, uma nova composição acontece, transformando tanto as consequências como os efeitos sucessivamente. Cada desvio, cada acréscimo, cada subtração, se renovam para uma solução que não tange o convencional ou o tradicional. Portanto, pode-se dizer, que improvisação, dentro do ponto de vista de acesso aos repertórios, é capaz de produzir também uma espécie de conhecimento específico.
(Lais Freitas Valadão + Thiago Ramos Reis)
A imagem acima é um mapa.
A própria ideia de cartografia, sustentada por Gilles Deleuze e Félix Guatarri, já deslocando a palavra do redoma conceitual que compreende a cartografia como ciência dos mapas de territórios fixos, se refere a um processo aberto, orientado pelos afetos, oriundos de relações, como linhas de força que inscrevem os acontecimentos no espaço-tempo.
Um broto, ao mover-se em direção ao sol, improvisa labirintos, ata nós, tece redes sem lei, apenas para desbravar a luz, em modos de síntese transitória, numa forma de “agora sim - ainda não”. O humano também traça caminhos para si, e desde tenra idade é confrontado com a angústia frente ao desconhecido. Este desconhecido é indeterminação, que compreende um estado fragmentário, processo eterno de aglutinação e desabamento de estruturas. A indeterminação expressa uma gramática muito própria da vida e seus processos, exige uma capacidade de suportar o fragmentário, suportar o “ainda não”. Pode provocar por vezes angústia e desespero, não porque seja terrível, mas por ir de encontro a um estado de leis, às normas que conhecemos.
Como pontua Vladimir Safatle, a dificuldade em lidar com a indeterminação configura o narcisismo, visto que o narciso em seus traços plenos é incapaz de aceitar qualquer desvio de sua própria imagem. Para assumir um mapa para lugar nenhum, é necessário uma atenção para as leis e as regras o tempo todo, pois não se trata de um abandono da capacidade de fazer escolhas, mas de escolher, o tempo todo - mesmo que em alguns momentos se possa escolher não escolher - mas que se deva viver num estado de heteronomia sem sujeição, termo se Jacques Derrida, apropriado por Safatle. Isso significa que o sujeito, inegavelmente afetado pelo entorno, o tempo todo, não se pode dizer autônomo, mas um heterônomo que não se deixar subjugar.
Esta relação do arbítrio e a indeterminação se explicita na leitura da temática da consciência de si em Hegel por Safatle: "a consciência-de-si não se funda na apreensão imediata da auto-identidade, mas naquilo que nega sua determinação imanente". Nesta negação da permanência de uma imagem pétrea da identidade, a indeterminação toma corpo no confronto com a morte, onde um mapa para lugar nenhum pode ser um mapa para o abismo.
Se este mapa não me leva a priori a lugar nenhum, então estou no lugar para onde aponta este mapa. Podemos confabular que a cada passo que dou, um traço se dá à leitura, e o espaço se modifica à medida que leio-escrevo sem representação. Eis um mapa vivo.
O que podemos nos questionar na perspectiva do processo criativo é: se reconhecemos por princípio que todas as formas se modificam (sendo pela ação do tempo sobre a matéria ou por ressignificação do olhar a partir de diversas perspectivas), o espaço que se observa deste movimento é o próprio abismo, um espaço que se encontra na articulação de sistemas hegemônicos.
Podemos acrescentar ainda que não há abismo sem formas e normas. É justo o jogo de criação e dissolução das aparências, entre a determinação e a indeterminação, que configura o improviso: cartografar o incartografável.

Referências:
DELEUZE; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol.I. São Paulo: Ed.34, 1995.
SAFATLE, Vladimir. O amor é mais frio que a morte: negatividade, infinitude e indeterminação na teoria hegeliana do desejo. Revista Kriterion, Belo Horizonte, vol.49, no.117. Março de 2008.
SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2ª edição. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2018.



“Um mapa para lugar nenhum” (Work in progress).
Tecido e linha. 2020. Amanda Rocha.
patrícia paixão martins - ppgav/ufba
disponibilidade

algumas pessoas se dão bem com rotinas, outras não. executar uma quantidade específica de tarefas em específicos lugares pode ser uma preocupação a menos, um sentido de ordem, ou um infinito tédio, um cansaço. independente de a qual grupo pertencemos, o dia possui uma ordem; um pequeno planejamento, que seja.

o que às vezes nos escapa é que essa rotina/planejamento, pode acontecer de infinitas formas: posso pega diferentes caminhos, posso tentar inverter a ordem das atividades, posso encontrar alguém no caminho, posso se arrebatado por um pensamento dentro da minha própria cabeça ou posso ter esse pensamento interrompido por um estranho. esse pequenos desvios do cotidiano são inevitáveis e existem com todos. alguns deles de fato não nos significam nada, ou podem ser motivo para atrapalharem a vida, o estado de espírito, o humor. mas, quando decidimos que aquele evento inesperado pode nos ser uma experiência, nos tornamos disponíveis para a vida e sua lógica específica e caótica, na falta de uma falta de compreensão dessa lógica tão bem articulada.

assim como o improviso pode ser uma decisão, um recurso criativo, que é por vezes muito bem planejado e exige uma mudança de estado para que acontece - ou as vezes é apenas uma resposta rápida a uma determinada situação fora do usual -, se deixar disponível segue os mesmos passos e encontra muita afinidade ao ato de improvisar.
estar disponível significa colocar o corpo e a mente no mundo e entender os desvios como impulsos de vida, não lutar contra a corrente a fim de chegar à um ponto pré-estabelecido, mas encontrar vários outros pontos de parada dentro de um caminho que vai se construindo à medida que é percorrido, é deixar seu repertório e intuição a frente de qualquer planejamento.

dentro do nosso mundo contemporâneo se deixar disponível pode ser um ato de resistência e cura para si, já que nossa racionalidade é exigida a todo momento, enquanto nosso afetos por vezes são sufocados pela necessidade de sair do ponto A ao B com o mínimo de desvios possíveis. e é no desvio que encontramos o caminho, por vezes.
estar disponível é uma investigação da experiência sobre ela mesma, sem começo nem ponto de chegada, é não fazer nenhum julgamento específico, apenas se mostrar disponível, disposto, atento, alerta.


dentro do campo da minha pesquisa, especificamente, os desvios são o que tornam tudo possível, e é por se mostrar disponível para o que os outros caminhos trazem que encontro respostas que não encontraria em uma linha reta. dentro da minha produção, comecei a investigação da materialização de imagens para outros suportes, e os vários duplos que esse caminho gera, e hoje, com os desvios, entendo a imagem como uma matriz, assim como o próprio corpo, que carrega em si um acúmulo de camadas, sulcos, posturas, e que também é imagem. e que também é matriz e gravura e duplo e espelho.

estar disponível para os desvios me ensina muitas coisas sempre que me deixo levar por esse estado.
estar disponível também requer uma disponibilidade.
ou muitas vezes se dá pela decisão de não dobrar uma esquina usual e seguir reto, de olhos bem abertos.
































referências:
BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras. Educ. [online]. 2002
como ilustração, deixo um autorretrato de antonie d’agata, um artista que gosto muito, mas que também me traz muito desconforto - o que é maravilhoso.
acredito que ele fez de sua vida e de seu corpo uma eterna disponibilidade dentro de suas obsessões,
acreditando no acaso consciência e nas suas imagens mentais.
COIMPLICAÇÃO






















O conceito de coimplicação, pensado a partir de uma tentativa de borrar as fronteiras dos campos de pensamento da natureza e da cultura (a partir de Anna L. Tsing), parece encontrar um paralelo no pensamento contra-dicotômico da cidade e do corpo (como apontam Paola B. Jacques e Fabiana D. Britto).

Nesses dois pares, parece haver uma noção implícita de construção ininterrupta, em que ambas as partes de cada par se arranja provisoriamente até que um distúrbio provoque a necessidade de um outro arranjo entre elas. Então, entre as partes, surgem ações não planejadas previamente, as quais são fundamentais para a manutenção do sistema formado entre elas - adaptabilidade e improvisação. Para que isso ocorra, há fundamentalmente o pressuposto de que não existe um "cenário" - que seria a cidade - ou uma "natureza" autônomos, apartados dos seres vivos que estão, ocupam, usufruem e atualizam seus espaços. É a relação entre as partes interdependentes que propicia a continuidade da sobrevivência dessas mesmas partes, coimplicadas mutuamente - como nas relações ecológicas que conhecemos e nomeamos, tal como simbiose, mutualismo, etc.

A pesquisadora Anna L. Tsing, ao estudar as redes de produção e comercialização do cogumelo Matsutake (o qual brota em regiões de florestas industriais abandonadas, porque necessita da grande quantidade de minerais e outras substâncias encontradas nos solos dessas florestas, bem como da luz solar existente nessas áreas desmatadas), nos mostra não apenas a interdependência entre espécies daquela natureza que entendemos como apartada da humanidade - porque está fora do corpo humano - mas a coimplicação entre distúrbios causados pelos humanos e transformações no meio-ambiente. E é justamente essa separação, a qual entende o ambiente como uma entidade distante, apartada da espécie humana, que promove estudos acerca da paisagem natural e urbana pautados pelo discurso do impacto, da gestão e do controle - como se a humanidade apenas operasse tais transformações e não estivesse à mercê de suas influências de maneira para além do seu próprio controle.

O "ambiente urbano", por sua vez, "não é para o corpo meramente um espaço físico, disponível para ser ocupado, mas um campo de processos que, instaurado pela própria ação interativa de seus integrantes, produz configurações de corporalidades e qualificações de ambientes" (BRITTO, F. D.; JACQUES, P. B. 2012, p. 150). Cidade e corpo, ou cidade e humano, configuram-se mutuamente: os espaços urbanos podem de certa forma restringir e até violentar corpos, mas ao mesmo tempo, são os corpos que atualizam os espaços, subvertem programas e planejamentos, indicam novos modos de vida que podem ocorrem no espaço urbano à despeito das regulações, programações e normas.

A coimplicação, portanto, provoca outras leituras de mundos, tendo como foco as relações estabelecidas não somente dentro da lógica humana-social, uma vez que coloca o humano apenas como mais um fator participante do sistema que, sobretudo, mantêm-se a fim de dar condições à continuidade da vida. Ademais, o paradigma colocado pela relação de coimplicação recusa a excepcionalidade humana como força atuante no mundo e na história, oferecendo uma vastidão de possibilidades que podemos considerar a fim de nos entendermos enquanto comunidade.


REFERÊNCIAS

BRITTO, Fabiana; JACQUES, Paola. Corpo e cidade–coimplicações em processo. Revista da Universidade Federal de Minas Gerais, v. 19, n. 1-2, p. 142-155, 2012.
TSING, Anna Lowenhaupt. The mushroom at the end of the world: On the possibility of life in capitalist ruins. Princeton University Press, 2015.


Ana Luiza Silva Freire
Doutorado - PPGAU/UFBA


"Paisagens não são panos de fundo para a ação histórica/humana: elas são ativas. Assistir paisagens em formação mostra a união/inseparabilidade de humanos e outros seres vivos na criação de mundos" (TSING, A. L. 2015, p. 152. Tradução nossa).

"Corpo e cidade se definem mutuamente - corpografia urbana" (Notas de aula, disciplina "Laboratório Corpocidade", em 14/08/2019).

Imagem: Fungo em mosca.
Autor: Nelson Menolli Jr. (2020) Disponível em:.